terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Os Preparativos

10 km nadando, 423km pedalando e 84,4 km correndo. Essas são as distâncias do Ultraman, um triathlon de proporções gigantes que até 2010 nem passava na minha cabeça tentar completar. Achava que o Ironman era o limite para quem tem que trabalhar ou estudar, mesmo que em meio período. Aos poucos, pesquisando os perfis desses ultra-atletas, fui abrindo minha cabeça para novos conceitos e a pergunta: "Quem sabe alguém "normal" poderia chegar lá?" ficou martelando na minha cabeça.

Depois de quase quatro anos namorando a idéia e tentando mudar a resposta da tal pergunta, finalmente me pareceu possível completar a prova. Foram muitas horas de estudo, leitura de livros de treinamento e sites de atleta, técnicos e muito tempo para acostumar com a idéia e digerir toda as informações para traçar na minha cabeça um esboço de um plano que tivesse alguma probabilidade de sucesso em um desafio dessas proporções.


Hora de trocar essa armadura velha.

Em outubro de 2013 parti para a execução.  Reiniciei o treinamento de ciclismo e corrida bem devagar.  O objetivo era perder peso e ganhar condicionamento físico. Com 1,72m e 95 kg não é tão simples correr 10 km, muito menos um Ultraman. As médias não passavam de 27 km/h no ciclismo e o ritmo nas corridas de 5 km sequer beliscava os 9 km/h!

O único pré-requisito oficial para ser aceito no Ultraman é fazer um triathlon de distância "Ironman" (3800m nadando/180km pedalando/ 42,2km correndo) em menos de 14:30' nos 18 meses anteriores à prova.

De outubro/13 a março/14 tratei de me aplicar nos treinos e consegui melhorar minhas marcas significativamente.

Em março de 2014, já com uns 8 kgs a menos do que no início dos treinos, fiz o HITS Ocala, um triathlon de distância Ironman.  Consegui completar em 12:01', mesmo com um rabo de tornado passando pelo ciclismo, sucesso! Faltava mandar o pedido para ver se eles me convidavam. Convite? Como assim? Para fazer um ultraman não basta você pagar a taxa de inscrição ou qualificar com tempos bons. É feita uma análise do currículo, se eles acharem que você merece estar lá então recebe o convite.

Chegada depois de 12:00 no Hits Ocala, um triathlon de distância Iron

Chegou abril de 2014 e eu preenchi todas as fichas e todos os questionários, li, reli e não mandei até o último dia. Por alguma razão quando ia apertar o botão de “enviar” do meu email eu sempre pensava: “vou dar uma lida e revisar mais uma vez”. Nos 47’ do segundo tempo mandei a inscrição para a organização do Ultraman da Flórida. Perguntas que não tem resposta certa nem errada do tipo: "Porque você acha que merece uma vaga no Ultraman Flórida 2015?" e "O que te motiva como atleta de endurance?" foram respondidas no questionário anexo ao currículo para ser enviado e analisado pelos organizadores da prova. Dez dias depois chegou a resposta: "Você está convidado para participar do Ultraman Flórida 2015."  Agora o negócio tinha ficado sério!


No final de abril tive a oportunidade de trabalhar como apoio do Ultra Márcio, um super atleta do Amazonas que veio competir no UltraBrasil 515, a única prova de distâncias Ultraman no Brasil. A experiência foi ótima pois pude ver o que uma equipe de apoio mais precisa e como deve fazer para ajudar o atleta da melhor forma. Eu e o Dr. Caio, filho do Márcio, ficamos 3 dias dentro do carro acompanhando-o desde a largada em Paraty até a chegada na Praia do Pepê. Nas horas que encontrávamos outras equipes ou os organizadores aproveitava a troca de experiências para ver o que mais seria necessário na minha jornada. Palavras de extrema sabedoria eram proferidas pelos mestres Alexandre Ribeiro, Sérgio Cordeiro e Alexandre Luna.

No apoio do UltraMárcio Soares

O futuro capitão da equipe também foi voluntário no UB515.

O plano de treinamento específico para o Ultraman só seria iniciado em Agosto.  Até lá eu ainda tinha que aumentar o volume de treino e queimar um tanto de bacon!

Em agosto fiz duas provas que foram referências e me deram o norte para ser seguido.  A primeira foi o Audax Rio 300, com 300 km de pedal de Rio das Ostras até Barra do Furado e de volta para Rio das Ostras.  A segunda foi a UltraMaratona 24 horas dos Fuzileiros navais, onde aproveitei a estrutura da prova para correr uma dupla maratona. Ambas as provas foram sucessos.  Consegui dosar bem a alimentação e me manter por mais de 10 horas socando a bota sem dores ou cãibras.

Rasgando a noite nos 300 km do Audax.
Com a equipe de apoio (faltou o pai) no último reabastecimento no PC.
Correndo nas 24h dos Fuzileiros Navais.

De agosto para frente o treino ficou bem mais específico para o Ultraman.  Os finais de semana começaram a concentrar a maior parte do volume de treino. Tudo com uma progressão bem gradual e baseada em conceitos de periodização que me foram apresentados pelo grande mestre Serginho Winalda lá no final da década de 90. "Old school" até o osso!

O plano era simples: um pedal longuinho (de 70 -110 km)  na sexta feira,  um pedal longão no sábado (de 100 - 200 km), uma corrida longa no domingo ( de 15 - 42 km) e outra corrida mais curta (de 10 -15 km) na segunda. Na terça feira eu descansaria e na quarta e quinta faria treinos menores.

Tendo como disciplina mais fraca no triathlon a corrida esse plano me condicionaria a correr com as pernas bem pesadas, simulando o que aconteceria na prova: uma corrida longa depois de dois dias pesados de pedal. Para não parecerem treinos comuns eu os apelidei de "Power Weekends".

Durante os "Power Weekends" eu fiz várias experiências com a alimentação. Essa é a quarta disciplina do triathlon, muitas vezes negligenciada pelos atletas, mas eu não podia me dar a esse luxo. Com uma prova de 517 km era necessário também treinar o meu corpo para absorver o máximo de calorias e líquidos que eu pudesse. Testei várias marcas de isotônico e várias concentrações, combinações de líquidos,  géis, barras energéticas e outras comidas como castanhas,  amendoim e bananas. Com a assessoria da Fernanda, prima, nutricionista e atleta,  foi bem mais fácil de fazer essas experiências. 

No final de agosto eu já tinha perdido mais de dez quilos e esse alívio da carga já estava me proporcionando tempos melhores e a recuperação entre os treinos mais puxados era bem mais curta do que a alguns meses.

95% dos treinos foram feitos na "zona 1", uma zona de batimentos cardíacos ridiculamente baixa - no meu caso de 128 - 143 bpm. O objetivo desse treino em uma frequência baixa é transformar o corpo em uma máquina parecida com um motor a diesel, com uma mecânica fina, muito torque, baixa rotação e baixo consumo, ou se preferirem: baixo consumo de carboidratos, alto consumo de gorduras, baixa geração e acúmulo de ácido lático e muita durabilidade. Elevar os batimentos acima da “zona 1” só se fosse para escapar de algum motorista doido ou quando já não aguentava mais andar em marcha lenta e resolvia subir para Tapera. 

Os dias de descanso foram super valorizados. Lição que eu custei a aprender durante os treinos para os primeiros Irons. Quando ainda engatinhava no triathlon levei muita bronca do Tiago Matias, o que me rendeu o carinhoso apelido de "Monstro" do pessoal da natação. Tiagão insistia em me ensinar que "Treino faz mal, o que faz bem é descansar e comer bem. O treino é só a ferramenta para o organismo ver que tem que melhorar." Com a experiência de 22 anos de triathlon fico muito feliz de ter aprendido essa lição na metade do caminho.  

Em outubro realizei um sonho que tinha desde a primeira vez que assisti o Tour de France: participar de uma prova de ciclismo de contra-relógio. Por obra do acaso (ou não), o Campeonato Estadual Carioca foi realizado em Macaé. Foi uma prova que não tinha nada a ver com o meu treinamento de longa distância, mas vamos lá, sonho é sonho! Foi uma prova curtíssima e o motor rodou acelerado. Foram 18 minutos a 177 bpm e quase 40 km/h de média com muito vento!!! Um excelente resultado que mostrou que, apesar de não ter treinado especificamente para a prova, o motor estava em boas condições.

Linha de chegada do Camp. Estadual de CR.
Resultado final: 2o. lugar na categoria open

Novembro teve a XC Búzios, uma prova muito gostosa e muito puxada. Fiz na categoria de quartetos junto com o Bruno, Waldir e André. Aproveitei a prova e a inseri em um dos Power Weekends. Na véspera fui pedalando de Macaé até Cabo Frio e depois Búzios. No dia seguinte corri uma meia maratona. As subidas e o visual foram de tirar o fôlego, literalmente. Os Power Weekends continuavam cada vez maiores e mais puxados mas o meu organismo estava respondendo bem ao aumento do volume de treino.

Perdido em alguma praia de Búzios
Após a chegada com a equipe "Até o Fim" - Waldir, Bruno, eu e o André

Chegou dezembro e eu voltei a nadar. Foi uma estratégia que eu usei no Iron de 2002 e deu certo. A idéia era de me dedicar ao ciclismo e corrida até 2 meses da prova porque no Ultraman o tempo que se passa pedalando e correndo é muito maior do que se passa dentro d´água. Foi uma estratégia que significaria bem pouca evolução na água mas quem tem capacidade para correr duas maratonas com certeza também tem lastro para nadar 10 km, basta saber dosar a natação.

Apesar das festas de fim de ano o treinamento não podia parar. Fui para Brasília comemorar as festas com a família levando a bike e o tênis. Matei a saudade dos pedais pelo Lago Sul, L4, volta ao lago e principalmente o Lago Norte, onde fiz um treino de 130 km excelente dando incontáveis voltas no percurso onde comecei a treinar, lá em 1993, dando os primeiros passos e descobrindo esse mundo fantástico, diferente e tão gostoso que é o triathlon.  No dia 23/12 corri uma maratona "só para treinar", peguei uma chuva "daquelas" de lavar a alma. Dia 25/12 fiz um pedalzão natalino muito gostoso de Brasília a Formosa. Foi muito bom variar os locais de treino e rever pessoas tão queridas.

Janeiro foi um mês de total concentração. O volume alto cobrou um comprometimento forte. A temperatura no Rio de Janeiro fez o inferno parecer uma geladeira. Aproveitando a oportunidade fiz muitas corridas na hora do almoço, tirava 2 horas e corria de 15 a 20 km na praia. Foram muito difíceis e desgastantes mas sentia a diferença quando acordava de madrugada para fazer meus treinos. O peso já estava abaixo dos 80 kgs e isso me permitiu socar a bota nos treinos com bem menos desgaste. O percurso do ciclismo do Ultraman Flórida é bastante plano, até o km 200. A partir daí começa um sobe-desce que dura 75 km. Aproveitei bem a proximidade de Macaé com a serra e visitei Tapera várias vezes. Um pedal agressivo, que concentra um ganho de altimetria monstra nos últimos km. Um dos melhores treinos foi com o amigo e Super Randonneur João Pimenta, um guerreiro das ultra distâncias que é osso duro de roer. João aproveitou que estava passando aqui perto durante as férias e resolveu sofrer comigo num bate-volta à Tapera.

João Pimenta suando a camisa para subir até Tapera comigo em um treinão.

O comprometimento no último mês também gerou bastante desgaste familiar. Foi bastante tempo dedicado aos treinos. A rotina se resumia em trabalhar, treinar, comer, descansar e repetir tudo de novo. A Carol, entendendo a importância e o tamanho do desafio à nossa frente, foi uma grande apoiadora. Seu papel foi fundamental na estabilidade emocional para que eu pudesse me dedicar tranquilamente e com muita energia aos treinos.

Iniciei fevereiro muito bem. Os últimos treinos foram feitos a todo o vapor. Com 75 kg, 20 kg a menos do que quando comecei, tava treinando muito confortavelmente. Tive algumas excelentes oportunidades de correr com o mais antigo parceiro de treino, o meu irmão Guilherme, que também seria o capitão do time de apoio na Flórida. Corridas regadas a Gatorade e um excelente papo.

Chegou a hora de empacotar tudo e rumar pra Flórida!

Um comentário:

  1. Parabéns L.O. o blog e todo o relato com certeza são um livro, ou bem melhor que este já que os recursos de mídia ainda são mais "cool" , verdadeira fonte que ficara para posteridade e com certeza fonte de referência para aqueles que se propõem a zarpar para aventuras parecidas. Tks for share!

    ResponderExcluir